quarta-feira, 30 de julho de 2008

O encontro dos séculos

O encontro dos séculos*

Um encontro que aconteceu em um tempo e lugar qualquer do século XXI. É outono em Porto Alegre, mas faz um calor de 32ºC. Estão todos sentados à sombra de uma parreira: Sigmund Freud, Erico Veríssimo, Mario Vargas Llosa e Nelson Rodrigues.

V. LLOSA ─ Que patético! Quem nos colocou aqui?
N. RODRIGUES ─ Um leitor. “Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor. Nada interfere no pudor, na exclusividade e na inocência de sua relação com a obra de arte”*.
V. LLOSA ─ Mas que relação ele quer fazer, nos colocando aqui? Não me interpretem mal...É uma honra estar aqui, mas vocês...
VERÍSSIMO ─ Estamos mortos? Isto é somente um detalhe. “O importante é que aconteça alguma coisa...”, eu escrevi em Saga. Gosto deste trecho: “A vida é um grande jogo e o destino, um parceiro temível que só aceita grandes paradas. Está bem. Ponho na mesa todos os meus sonhos. Não basta? Jogo então a vida. Do outro lado daquelas montanhas ficam então Espanha e a guerra. Caminho ao encontro de novas sensações. Ou da morte? Que importa? A morte também é uma aventura, a definitiva, a irremediável”.
FREUD ─ A morte é a companheira do amor: juntos eles regem o mundo. É sobre isto que escrevi em Além do princípio do prazer.
N. RODRIGUES ─ Acho que é por isto que estamos aqui. Para conversar sobre a morte e sobre o amor, e o que cada um faz com o outro. Não é sobre isto que sempre escrevemos?
V. LLOSA ─ E não será por isto que sempre vivemos? Utilizamos o dom da palavra escrita para conversar com aqueles que só pelo toque nos são inatingíveis. Sobre o amor, “acredito ser o tema mais recorrente na literatura. E no entanto o mais difícil de abordar com originalidade (...) o amor é uma experiência muito completa, na qual intervêm todos os estados de ânimo”.
N. RODRIGUES ─ E “morremos tão pouco de amor, e nos matamos tão pouco de amor. Não quererá isso dizer que somos uns pobres, uns desgraçados impotentes do sentimento?”

Silêncio
FREUD ─ Amor...Morte...Pulsão de vida, pulsão de morte... Tantas das coisas que hoje em dia tanto nos questionamos são efeitos desta “civilização tão complicada, dos conflitos entre nossos instintos e nossa cultura”. Se prestarmos mais atenção, isto tudo é relativamente novo. “Os heróis da Antiguidade – por exemplo – não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego”, como nós, do século XX.
VERÍSSIMO ─ Só nisto, sem falar de todo o resto de herança que nos deixaram, já vale o tempo no qual nos ocupamos em ler os Clássicos.
V. LLOSA ─ É de Ítalo Calvino a frase “os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”, não é mesmo? Concordo com ele. “Ler boa leitura é ainda aprender o que e como somos – em toda a nossa humanidade, com nossas ações, nossos sonhos e nossos fantasmas”.
FREUD ─ Eu, por exemplo, diversas vezes remeti para a grande cena das dinastias da Grécia antiga o pequeno caso privado da família burguesa.
N. RODRIGUES ─ Fale mais sobre isto...
FREUD (segurando diante de si o seu cachimbo) ─ Alguém tem fogo?... Tive um professor – Brentano – que foi um grande leitor dos clássicos greco-latinos. A Aristóteles eram dedicadas muitas de suas aulas. Lendo os sofistas, por exemplo, ampliei minha discussão sobre o problema do paradoxo, como, por exemplo, pensar que a verdade só chega por caminhos tortuosos, muitas vezes por acessos indiretos – os sonhos, chistes, atos falhos...
VERÍSSIMO ─ Mas, e os mitos gregos? Onde tudo começou para o senhor – se é possível responder essa pergunta...
FREUD ─ Muito contribuiu para a descoberta da psicanálise. Dar valor às antigas dinastias heróicas me valeram para projetá-las na psiquê. Consideremos, por exemplo, que cada um de nós “foi um dia, em germe, na imaginação, um Édipo que se apavora diante da realização do seu sonho transposto para a realidade”.
N. RODRIGUES ─ Sempre fiz questão de afirmar que jamais li a sua obra, Sr. Freud. Mas começo a reconsiderar...
VERÍSSIMO ─ E acho que vocês dois juntos, comentando suas criações – mesmo que em instâncias tão distintas – ainda podem encontrar muitos pontos de ligação.
N. RODRIGUES ─ Até porque não discordo de muitas de suas teorias. A proibição do incesto, por exemplo. Para mim, o incesto é sinônimo de morte. Se o homem concretizasse suas fantasias inconscientes, a morte seria inevitável. O cinzeiro, por favor...
V. LLOSA ─ Na verdade, a literatura greco-latina pode ser considerada como a “senha de identidade da cultura ocidental, da qual beberam todos os escritores da história”.
N. RODRIGUES ─ “Gosto dos gregos”. E isto de certa forma influenciou algumas de minhas obras. Como para muitos – como diz o amigo Llosa. A tragédia, a reinterpretação dos mitos gregos, quando não é expressa, está implicada nas minhas peças. Pelo menos é o que dizem... E eu concordo.
VERÍSSIMO ─ Em Senhora dos afogados fica clara esta reinterpretação: para um homem casar-se precisa sacrificar a prostituta que existe na mulher. Um mito!
FREUD ─ E o coro! Adoro a parte em que entra o coro. A peça dá um grande relevo ao coro espectral dos vizinhos, que se desdobra em múltiplas funções, à maneira do coro grego, representando a consciência viva.
VERÍSSIMO ─ Sublime observação! Não é a toa que és reconhecido como um grande homem que causou uma verdadeira revolução no pensamento do século XX.
FREUD ─ “Não me considero um grande homem; apenas fiz uma grande descoberta”.
VERÍSSIMO ─ E basta estarmos vivos e atentos que grandes – ou nem não grandes assim – descobertas possam ser feitas. Eu, por exemplo, nunca tive o costume de ler muito os clássicos, mas descobri com Estêvão – o filho da cozinheira dos vizinhos lá da minha infância – o grande valor e o prazer da ficção oral. Foi com ele me contando diversas histórias por ele inventadas que descobri esta arte.
V. LLOSA ─ E tantos grandes escritores descobriram nas primeiras manifestações literárias, nas epopéias, nos poemas épicos ou na poesia lírica um estilo próprio de escrever: James Joyce, Gabriel Garcia Màrquez, José Saramago...
VERÍSSIMO ─ Ítalo Calvino, que repete alegoricamente o gesto de Édipo quando ele – Édipo – perfura os olhos, com Palomar; Guimarães Rosa em Grandes Sertões Veredas, onde apresenta um mito ao lado de outro mito, valorizando como ninguém a força da oralidade...
N. RODRIGUES (estendendo algumas bergamotas recém colhidas) ─ Querem provar? Está uma delícia... Uma discussão que tive, há algum tempo, com o meu grande amigo Vinícius de Morais: eu considero muitos de seus sonetos uma obra que tem como matriz a poesia lírica, por exemplo.
VERÍSSIMO ─ “Meu Deus, eu quero a mulher que passa / Seu dorso frio é campos de lírios / Tem sete cores nos seus cabelos / Sete esperanças na boca fresca!”
N. RODRIGUES ─ “Oh! Como és linda, mulher que passas / Que me sacias e suplicias / Dentro das noites, dentro dos dias!”
VERÍSSIMO ─ “Teus sentimentos são poesia / Teus sofrimentos, melancolia / Teus pêlos leves são relva boa / Fresca e macia / Teus belos braços são cisnes mansos / Longe das vozes da ventania”.
V. LLOSA ─ “Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro! / Quem goza o prazer de te escutar / Quem vê, às vezes, teu doce sorriso / Nem os deuses felizes o podem igualar”.
FREUD ─ Esta é Safo!
V. LLOSA ─ Mas poderia ser Vinícius ou tantos outros poetas. Safo iniciou, na lírica, a poesia endereçada para a mulher, mas esta rima que expressa as paixões pessoais, medos, êxtase, gozos persiste.
N. RODRIGUES ─ Pois “o poeta é um fingidor...”
VERÍSSIMO ─ “Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Grande Fernando Pessoa!
FREUD ─ Um bom vinho, ótimas companhias, um fresco final de tarde... o que mais pode desejar um homem que já morreu?
V. LLOSA ─ Eu, que ainda só envelheço, aproveito a companhia também para me alimentar de boa leitura. Como disse certa vez Umberto Eco “As histórias já feitas nos ensinam a morrer. Creio que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da literatura”.
VERÍSSIMO ─ E isto nos alimenta mesmo. Certa vez eu disse: “A cabeça de um romancista é como a oficina do Dr. Frankenstein. Não é possível criar do nada”. Eu, por exemplo, aproveitei muito das histórias e memórias da minha infância para criar meus contos e romances. E foi nisto que me transformei: “O que eu era então e continuo sendo agora é um contador de histórias”.
N. RODRIGUES ─ E grandes histórias! Com drama, sátira, erotismo...
VERÍSSIMO ─ Às vezes eu penso que o satirista que tenho dentro de mim é um agente secreto de meu superego”.
N. RODRIGUES (distribuindo o restante de vinho entre todos) ─ E o erotismo?
VERÍSSIMO ─ “O erotismo de alguns de meus livros – Olhai os lírios do campo, Incidente em Antares, O resto é silêncio – é quase inocente. Não fui eu quem inventou o sexo. Não é possível apresentar uma personagem com verossimilhança se preconcebidamente deixarmos de lado seus problemas sexuais”.
FREUD ─ D.H. Lawrence também pensava assim, mas os que o censuraram na época talvez não. Ele julgava que o sexo era o nosso ser fundamental, mas aproveitava suas histórias também para discutir a sociedade humana.
V. LLOSA ─ E antes dele, Petrônio. Como o belo conjunto de contos de Satiricon, que destacava o surgimento do poder que as mulheres viriam a ter em Roma, Lawrence também deixava claro o papel das mulheres em sua literatura: decisivas para a existência dos homens.
N. RODRIGUES ─ Podemos concordar que o erotismo é o tema mais antigo da literatura. Explícito ou não.
VERÍSSIMO ─ Podemos concordar com tantas coisas... ou discordar também. De uma forma ou outra, isto sempre será um grande feito.
V. LLOSA ─ Estou envelhecendo... quero aproveitar o meu tempo. E acho esta uma boa forma de aproveitar o tempo. “É claro que aprecio a vida real, mas também a vida sonhada”. Agora me lembro que certo dia comentei em uma entrevista sobre isto - vida real e vida sonhada – e disse: “Aprecio, como Ulisses, a vida sonhada. É por isso que este personagem me parece tão sedutor. Ulisses possui um espírito intrépido e aventureiro que se reflete em minha personalidade fantasiosa”.
VERÍSSIMO ─ Aproveite então muito bem o seu Ulisses, que interpretas em Odisseu e Penélope. Viva ele intensamente em cada ato. E sobre envelhecer, meu caro, “é preço que todos temos que pagar se quisermos continuar vivos. Não há por onde escapar”.
FREUD ─ Mas continuamos, talvez, submetidos ao destino e à vontade dos deuses. Penso que “talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos”.
VERÍSSIMO ─ É... e “seguir ao acaso, como os barcos antigos...”.
V. LLOSA ─ “Sem bússola nem porto certo, guiado apenas pelas estrelas”.
N. RODRIGUES ─ Um lugar ao sol?
VERÍSSIMO ─ Isto mesmo... Acabou o vinho?
FREUD ─ Acabou.
VERÍSSIMO ─ Seguiremos então os nossos destinos, esperando que algum outro dia um outro leitor, brincando de ser um deus, invente novamente este encontro.
N. RODRIGUES ─ “O destino dos homens é a liberdade”, disse Vinícius de Moraes. E para mim, a liberdade inicia com a morte.
FREUD ─ “A morte, companheira do amor”.
V. LLOSA ─ Algo tão difícil de abordar...
VERÍSSIMO ─ “Mas o essencial é que aconteça alguma coisa”.

Saem todos, ficando somente Vargas Llosa fumando o seu último cigarro.








* Texto produzido por marta Orofino para disciplina do Mestre Seben – Leituras Clássicas I
* Algumas falas foram extraídas literalmente de alguma obra autobiográfica. Outras, construídas a partir do entendimento que fiz sobre a percepção do autor sobre o tema da conversa. As frases literais serão colocadas entre aspas a fim de informação.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Ah! esqueci de me apresentar.

Poeta de Pedra
Sou poeta arrogante
Dono de minha arte.
Dono destas palavras defuntas,
Frias, vazias, sem tinta

Sou poeta infame
De um olho só
Construtor de rimas silenciosas,
Nem ricas, nem pobres, apenas torpes.

Sou poeta do nada,
Nem da vida nem da morte.
Estátua de gelo, flutuante
Frígido, maciço, sem sangue.


Sou poeta do tempo,
Mas sou menos do que vento
Sou menos do que invento.

Até que olhos de mente curiosa
Derretam meus sentidos.

Também conhecido como Orides.
Os grilos

Essa caixa em que me encontro
Sufoca-me,
Tira-me o ar.
Queria poder gritar,
mas um grito cujas notas fossem ouvidas
por gentes reais,
Não por esses desenhos fantasmagóricos
que me espreitam, que me seguem
pelos resquícios de luz
que escapam de meus olhos na escuridão.
E os grilos, meus confidentes,
querem mais é serem ouvidos.
Enquanto minhas palavras morrem nessas frias,
Invisíveis, intransponíveis paredes.
E os fantasmas me espiam,
Impassíveis.
Finjo não vê-los, não sentí-los,
E sob a melodia griliana,
Adormeço. . .
Orides (alguém tinha que continuar...)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Quereres

Não quero lhe falar do que vivi
Nem de tudo que aconteceu comigo

Quero o verão imenso
Quero o livro mais intenso
Quero o sabor mais picante
Quero o som mais vibrante

Não quero levantar grandes questões
Nem filosofar o abstrato

Quero cores de Frida Kahlo
Quero pintura sem reparo
Quero uma foto envelhecida
Quero essa imagem refletida

Não quero lhe falar do futuro
Nem da nossa cegueira branca

Quero acreditar e sonhar
Quero acordar e realizar
Quero o efêmero instante
Quero a poesia constante

Carla Soares (Bah, alguém tinha que começar...)